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Fuga

Abandonei a todos e fui-me embora. Não disse para onde iria, não deixei nenhum recado, apenas segui em frente. Atrás, as recordações; à frente, o silêncio. Tentei apagar todos os resquícios de uma náufraga existência. Busquei, em vão, o que a mim não pertencia. E, quando tudo se mostrava irremediavelmente perdido, eis que algo inesperado aconteceu. Com um afável sorriso no rosto e um olhar compassivo, numa rua erma e esquecida, lá estava você outra vez vindo ao meu encontro.

Frivolidade pequeno-burguesa

Não quero escrever nada muito profundo, não quero ser tomado por um tolo sentimento do quanto os oprimidos sofrem, ou de quanta injustiça há no mundo; quero apenas viver aquilo que pode ser vivido. No prosaísmo do cotidiano, papo furado entre amigos, boa comida, um bom vinho, trabalho – dia após dia, descanso, família. Sempre contra um mundo melhor , contra um novo homem , mas com posturas e valores, é claro; só os chatos e entediados já acordam pensando em revolução. 

Decadência

No altar do Nada, em meio a corpos e coisas, contemplo a deterioração constante de tudo. Uma piada sobre algo do cotidiano; um cão que ladra; uma mulher que passa. Dias, semanas, meses, anos... A imagem que vejo no espelho não é mais radiante. Sempre uma única direção, sempre o mesmo acre sabor. ... Deleito-me, enquanto posso.

Burguesia

Um brinde à burguesia! Ela não fede, mas, como todo mundo, quer também ficar rica. Não quero aqui fazer poesia, quero falar mesmo é da vida comezinha; aluguel, contas, plano de saúde, uma boa escola para os filhos... Não é nenhum crime querer algo mais! Vender, comprar; ter princípios e valores; crescer na vida à custa do próprio labor. Uma piscina cheia de ratos é própria daqueles que vivem do suor alheio, daqueles que, por não suportarem a própria mediocridade e incapacidade, adoram culpabilizar aquilo que chamam genericamente de “O Sistema”.

Evanescente

O que nasce, o que medra, o que fenece; tudo está circunscrito no tempo, tudo é frágil, limitado, efêmero. Estações que se sucedem; precipícios que se avizinham. O medo da aniquilação, do regresso ao nada, intensifica os prazeres do agora. Na natureza selvagem, junto com outros animais, o animal homem constrói seu refúgio, cria seu próprio mundo e inventa outras tantas possibilidades.

Dissolução

Não existe nada mais constante do que a inconstância. Hoje vejo. Amanhã não vejo. O que parecia eterno se dissolve aos poucos. Eu miro outra vez teu conhecido semblante e a única coisa que enxergo são lembranças. Dia após dia... Ano após ano... Partidas, encontros; idas e vindas. Ergo-me mais uma vez e prossigo.

Impermanência

O açoite da desesperança assola o mundo dos vivos, dilacerando sonhos, fantasias e expectativas. Cravado no coração das trevas, um mistério sepulcral se esconde. No umbral último, a seguinte inscrição: “Abandonai, vós que entrais, aqui toda a esperança.” Nove círculos de agonia, dor e sofrimento. A alma como um leito seco de rio Uma angústia silenciosa e crescente Um passo em falso abismo

Voltar às coisas mesmas

Desafiar o canto da sereia do conformismo. Ser aquilo que se é, e não aquilo que os outros gostariam que você fosse. Viver no real, na concretude do cotidiano, por mais tedioso que ele possa muitas vezes ser. Fugir de idealizações e abstrações que não nos levam a nada. Olhar uma árvore e ver uma árvore. Não ir além nem ficar aquém. Despir-se de um eu velho e carcomido. Mirar-se no espelho, sem medo. Ver. Pensar. Ser.

Percepção

Eu sou um epicurista, hedonista, egoísta, materialista, niilista, cético e tudo o mais que você quiser. Não almejo grandes altitudes filosóficas, não busco a verdade, não me preocupo em ser mais virtuoso, quero apenas fruir. Sou pela negação dos grandes sistemas de pensamento, pela negação das grandes doutrinas teológicas e pela não aceitação de tudo aquilo que tenha um caráter pré-cozido. (Seria quase um solipsista, se isso fosse realmente possível.) Não tenho nem quero ter onde repousar a cabeça. Assim como não acredito em um mundo melhor, também não acredito em um homem melhor, um homem que supere a si mesmo. Sou extremante cético quanto ao aprimoramento progressivo do ser; estamos em contínua mudança, é claro, mas nada nos indica que tal movimento siga rumo a algo mais edificante. Sei que a vida é um entreato, um breve e fugidio momento, delimitado por dois grandes abismos. Sigo, abujamramente , caminhando no incerto, nesta causa perdida, provocando e idolatrando a dúvida. ...

Absurdo

Seres insignificantes, sem nenhum propósito, perdidos na imensidão indiferente do Cosmos, buscam algum sentido, mas nunca o encontram. Muitos, desesperados, tentam inventar um; acham que uma ilusão institucionalizada diminuirá de alguma forma a angústia que sentem. Outros, mais sensatos, veem nisso uma oportunidade; se não existe sentido algum, podem então criar um para si mesmos, fazendo de suas vidas aquilo que quiserem – uma obra-prima ou uma garatuja.  E há, em um número muito menor, aqueles que abraçam o absurdo da existência ao compreenderem a inutilidade de toda e qualquer tentativa de procurar atribuir sentido ao que quer que seja.

Solilóquios modernos

Muitos “amam” a diversidade, mas não conseguem conviver com o diferente no seu dia a dia. É crescente, infelizmente, o número de pessoas que desistem do diálogo, que preferem ficar com o monólogo da sua própria verdade pessoal projetada naquilo que chamam de seus interlocutores . Se os outros devem ser apenas um reflexo daquilo que se é ou pensa, então todo debate verdadeiro já se encontra natimorto, pois o que sobrevive daí é apenas uma cópia barata, mera expressão de um autoprazer intelectual.

Meine Lippen

Em minhas veias corre uma incandescência, um líquido que tende a se solidificar. Por que continuar falando de amor? Por que viver buscando a magia? As desilusões são o que existem de mais constante; os sonhos nunca se realizam! Para reacender a chama escondida do ser, para sentir o afetuoso sabor de lábios ardentes, para alcançar, enfim, o beijo da vida, é preciso sempre, por mais inútil que pareça, continuar.

Bem-aventuranças de um desaventurado

Bem-aventurados os que não amam ardentemente, porque viverão uma vida sem grandes desilusões; Bem-aventurados aqueles que nunca se apaixonam, porque não enfrentarão as tormentas e convulsões de um estado febril; Bem-aventurados os que nunca sofrem por amor, não porque serão recompensados, mas porque viverão bem melhor assim.

Opacidade

Nos confins inexplorados do Universo, uma improvável lágrima se forma; a diminuta partícula, ao longo de bilhões e bilhões de anos, vai agregando massa e adquirindo velocidade. Muitos veem tal fenômeno como um sinal de esperança: “Deus finalmente está ouvindo nossas preces!” Outros, por sua vez, predizem o fim catastrófico da Terra: “Já era chegada a hora de encerrarmos essa nossa medíocre perambulação.” Os cientistas, como sempre, não chegam a nenhum consenso. O anúncio da rápida e eminente aproximação do estranho corpo celeste cria um grande alvoroço. Todos querem vê-lo. No entanto, para decepção geral, ele vira à direita em Saturno, perdendo-se distraidamente na escuridão do espaço.

Dançando no fogo

Sinto o seu perfume; passo além do ponto. Que alguém me ajude, não aguento mais! Quero você perto de mim, fazendo-me gritar, tirando-me do chão, levando-me à loucura. Que seja esta noite, que seja agora! Eu mereço mais do que nunca.

Círculo vicioso

Só acreditamos naquilo que queremos acreditar. Todo o nosso conhecimento pessoal está calcado nas nossas predisposições pessoais, pois estamos sempre à procura de hipóteses e evidências que confirmem as nossas próprias teorias e conclusões. Achamos que temos uma resposta para tudo e, com isso em mente, tentamos fazer com que o mundo se encaixe dentro do nosso pequeno entendimento das coisas.

Natureza

Na relva molhada pelo orvalho, estirei meu corpo lânguido para sentir o calor dos primeiros raios de sol, naquilo que se anunciava como um esplendoroso dia, e fui mordido por uma formiga brava.

Graceful

Graciosa, efusiva, mas sem nenhuma temperança! Sobre a relva, perdida em devaneios, és o que és: mistério que não cansa. Definir-te não posso – não seria de bom senso; talvez me falte talento, ousadia, constância... Vejo que estás mais uma vez sonhando acordada, voando acima de prados verdejantes, buscando ser novamente aquilo que não era antes. Não sei mais o que faço para bem te retratar; melhor deixar que o rio corra, como sempre, para o mar.

Aforismos Nada Poéticos

O grande motor da modernidade é o tédio. Não existe nada mais perturbador e insuportável para a modernidade do que o silêncio. Às vezes acho que sou louco, às vezes tenho certeza. Só os idiotas nunca duvidam de si mesmos. O pessimismo romântico, com aquele seu ar blasé de que nada na vida vale a pena, é só mais um dos luxos que a modernidade pode nos oferecer.

“Ó sombra fútil chamada gente!”

Não faço falta a ninguém. Aliás, ninguém faz! Todas as coisas se sucedem e, um dia, terminam. Querer ser mais do que se é não passa de pura imaturidade. Nada mais fútil do que ter sonhos de grandeza e glória. Nada mais cômico do que aqueles que dizem que encontraram, após muita investigação e esforço, a sua missão neste mundo. Nada mais inútil e sem sentido do que querer ensinar aos outros qual é o verdadeiro sentido da vida. Ninguém sabe de nada! Estamos todos na mesma situação, tateando no escuro, perdidos, à procura de um interruptor qualquer.

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